Imaginem que são professores.
Imaginem que é dia de exame do 12º ano e foram convocados para fazer uma vigilância.
Agora continuem a imaginar...
O despertador avariou durante a noite (faltou a luz, por exemplo). Ou ficaram presos elevador. Ou o seu carro não tinha bateria. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o pequeno-almoço em cima da sua imaculada roupinha. Ou, já a caminho da escola, a GNR mandou-o parar só para verificar se tem o seguro e a inspecção em dia e atrasou-o.
Teve, portanto, de faltar à vigilância (mesmo que só fosse um atraso de 5 minutos é o equivalente a uma falta, na vida de um professor...)
O exame será realizado na mesma e você há-de ser substituído por algum professor suplente (convocado para o efeito) mas, VOCÊ tem falta, claro.
Ora esta coisa de um professor ficar com uma falta injustificada, ao contrário do que muita gente pensa, é complicada. TEM de justificá-la. A questão agora é: COMO justificá-la?
Passemos então à parte divertida...
A única justificação aceite, NESTA profissão, para o facto de ficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma sala do exame com a camisa vomitada e malcheirosa, é um atestado médico.
Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma "doença" poderá justificar a sua ausência na sala do exame e, portanto, você vai ao médico.
A partir deste momento, a situação deixa de ser divertida para passar a ser hilariante...
Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo (assim tipo com o sorriso de Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Melícias).
A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana (os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso dos programas televisivos de faca e alguidar)...
O professor sabe que não está doente.
O médico sabe que você não está doente.
O presidente do conselho executivo da sua escola sabe que você não está doente.
O director regional sabe que você não está doente.
O 'Ministério da Educação' sabe que você não está doente.
O próprio legislador, que manda um professor que fica preso no elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente.
Ora, num país em que isto acontece, em que isto TEM de acontecer só pode estar doente. Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente...
Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica (até pode ser racional, útil e eficaz em certas ocasiões) o que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade. E lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia o outro: "uma mentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade". Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados. Mas isso é normal. Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o “ET”, que este é um boneco e que temos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões. O problema é que em Portugal a ficção confunde-se com a realidade. Portugal é ele próprio uma produção fictícia a começar pela política já que os nossos políticos são descaradamente mentirosos. Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados.
Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade. Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal. Fica ofendida. Se eu digo isso é para a ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei.
Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja. Por exemplo, há quem leia revistas sociais e "fique derretido" ao ver casais felicíssimos e com vidas de sonho. Pronto, todos sabemos que aquilo é mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.
Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses.
Somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros.
Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias ao Brasil. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas.
Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante o mundo.
Está visto! Claro que não é um professor que falta a uma vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico.
É Portugal que precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio!
E pouco falta...
(adaptado de um texto escrito por um professor)